Breves apontamentos sobre as consequências jurídicas causadas pela alteração na orientação jurisprudencial na esfera cível.
Por Amanda Bortoli de Castro e Giovana Tortato Poleza.
Os princípios da irretroatividade e da segurança jurídica estão esculpidos no art. 5º, inciso XXXVI da CRFB/88[1] e determinam que a alteração legislativa não poderá retroagir de forma a prejudicar matéria sobre a qual já se operou a preclusão.
Deste modo, considerando que é justamente a interpretação jurisprudencial que complementa e auxilia na aplicabilidade de uma normativa, seria possível cogitar, neste sentido, que os precedentes judiciais seriam, de igual forma, irretroativos?
Primeiramente, importante enfatizar a função uniformizadora dos precedentes firmados principalmente pelas nossas Cortes Superiores. Isso porque, a partir do posicionamento do juízo acerca da matéria debatida sob a luz da legislação vigente, é delineado o comportamento esperado dos indivíduos, de modo que a interpretação dada pela jurisprudência se configura como uma concretização da lei no âmbito fático.
Assim, a partir da hipótese levantada por este artigo, quando é alterada a orientação jurisprudencial, a depender da extensão da mudança jurisprudencial promovida e do caso prático, pode ocorrer uma grande ruptura na expetativa de aplicação daquele direito.
Ou seja, em se tratando de um novo entendimento jurisprudencial que não se limita a discordâncias pontuais e interpretativas entre as decisões prolatadas pelos tribunais, mas sim se trata de uniformização de um novo paradigma sobre determinada controvérsia, é importante que seja ponderado sobre o novo entendimento e a possível fragilização da segurança jurídica das partes que serão afetadas.
Isso porque a mudança de entendimento é uma fonte de direito e define o modo pelo qual as pessoas se comportarão e, uma vez alterada o entendimento, devem as cortes pensarem com cuidado nos efeitos causados por esta modificação.
Neste aspecto:
“O precedente paradigmático dos tribunais superiores é fonte de Direito que muitas vezes define padrões de comportamento nem sempre explícitos no texto legal, com repercussão em todos os setores da vida social[2], sendo útil à uniformidade da jurisprudência e, sobretudo, à segurança jurídica.
(…). O precedente uniformizador – como espécie do gênero norma jurídica – constitui o Direito vigente no país pela força criativa da jurisprudência que preenche lacunas, dissolve ambiguidades da obra legislativa e interpreta conceitos vagos ou indeterminados. Frente à obscuridade do texto de lei, o órgão judicante não tem escolha senão construir a norma do caso concreto.
(…).
É regra tradicional do sistema brasileiro que a lei processual é criada para entrar em vigor e reger de imediato os processos em tramitação que encontrar pela frente, respeitados os atos processuais já praticados (CPC, art. 1.211).[3] Em equivalente circunstância, a lei interpretativa também não deve retroagir para prejudicar o direito adquirido e o ato jurídico perfeito,[4] sobretudo quando ela não representa fielmente o verdadeiro e autêntico sentido da norma que se quis interpretar[5].
Com entendimento jurisprudencial estabelecido, os indivíduos podem pensar suas escolhas em vista às consequências previstas na lei e na jurisprudência. Nesta seara, uma ruptura de entendimento pode causar problemas visto que traria enorme insegurança às decisões anteriores que foram prolatadas quando ainda não havia sido estabelecido o paradigma.
Ademais, importante mencionar que, via de regra, apesar do acima exposto, a mudança de entendimento poderá ser aplicada de forma retroativa, ou seja, caso o juízo não estabeleça a modulação de efeitos, o novo entendimento será imediatamente aplicado aos processos já em curso, de forma a gerar conflito “evitável” com o princípio da segurança jurídica.
Por que não aprendemos ainda a utilizar modulação de efeitos em todos os casos? Os efeitos práticos desta problemática serão abordados em nosso próximo artigo.
[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
[2] MELO, Gustavo de Medeiros. “Limites à retroatividade do precedente uniformizador de jurisprudência”. Revista Forense, n.º 407, Rio de Janeiro: Forense, jan./fev., 2010, p. 127-148. Apud FALLON, Richard H. & MELTZER, Daniel. “New law, non-retroactivity, and constitutional remedies”. Harvard Law Review, v. 104, 1991, p. 1760; HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1961, p. 158.
[3] MELO, Gustavo de Medeiros. “Limites à retroatividade do precedente uniformizador de jurisprudência”. Revista Forense, n.º 407, Rio de Janeiro: Forense, jan./fev., 2010, p. 127-148. Apud LAURIA TUCCI, Rogério. Irretroatividade das leis processuais. Enciclopédia Saraiva do Direito. LIMONGI FRANÇA, Rubens (Coord.). São Paulo: Saraiva, 1977, v. 46, p. 248. 59 A jurisprudência sempre deve ser aplicada retroativamente? Revista do Advogado – Homenagem a Octavio Bueno Magano. AASP, n. 86, jul./2006, p. 26.
[4] MELO, Gustavo de Medeiros. “Limites à retroatividade do precedente uniformizador de jurisprudência”. Revista Forense, n.º 407, Rio de Janeiro: Forense, jan./fev., 2010, p. 127-148. apud AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Irretroatividade das leis. Enciclopédia Saraiva do Direito. LIMONGI FRANÇA, Rubens (Coord.). São Paulo: Saraiva, 1977, v. 46, p. 248; MALLET, Estêvão. A jurisprudência sempre deve ser aplicada retroativamente? Revista do Advogado – Homenagem a Octavio Bueno Magano. AASP, n. 86, jul./2006, p. 26.
[5] MELO, Gustavo de Medeiros. “Limites à retroatividade do precedente uniformizador de jurisprudência”. Revista Forense, n.º 407, Rio de Janeiro: Forense, jan./fev., 2010, p. 127-148. Apud SORRENTINO, Federico. Le fonti del diritto. Genova: ECIG, 1992, p. 61.